CAPÍTULO II
—Bom-dia, Caterina. Quero falar com você.
A moça fez uma reverência e atravessou o salão, até o avô, que tomava o desjejum numa mesinha junto à janela.
O doge, Ludovico Manin, ainda era um homem bonito, e o sorriso que deu à neta indicou que devia ter tido um encanto irresistível. Apesar da idade e das responsabilidades de sua posição, pois como senhor da república, era um monarca, Ludovico Manin ainda sabia apreciar uma mulher bonita.
Olhou para a neta com prazer, notando que o vestido verde-claro realçava os cabelos de um vermelho dourado, tipicamente veneziano.
Mas, em contraste chocante, os olhos eram azuis, o que fazia com que os parentes de Caterina nunca esquecessem que a moça tinha sangue inglês.
—Tenho uma coisa para lhe contar— anunciou o doge.
Ela esperou, respeitosamente, mas foram interrompidos. Francesco Manin entrou na sala e, como sempre, Caterina notou o quanto se parecia com o pai dela. Na realidade, nunca podia olhar para o tio mais novo sem sentir um aperto no coração.
—Bom-dia, papai. Bom-dia, Caterina. É um dia perfeito para o carnaval, mas, para dizer a verdade, todos os dias são perfeitos, nesta época do ano.
Beijou de leve o rosto da sobrinha e sentou à mesa, ao lado do pai.
—É verdade que convocou uma reunião doCollegio, para hoje de manhã?
—Sim, é— respondeu o doge—, e eles ficaram muito irritados por terem que se privar dos prazeres do carnaval e, mais uma vez, ouvirem os conselhos do Marquês de Melford, de um modo que eu, pelo menos, acho profundamente maçante.
—Conselhos? Com que autoridade?
—Talvez «conselhos» seja exagero— observou o doge, com um sorriso—, digamos um «aviso», até mesmo uma «súplica».
—De que se trata?— perguntou Francesco, curioso.
—Parece que o primeiro-ministro britânico, o Sr. Pitt, soube por informações secretas que a França talvez declare guerra à Áustria. Ele tem medo de que, se isso acontecer, nossa independência fique ameaçada. Pessoalmente, acho ridículo.
—Claro que é. O que aSignoría acha disso?
Referia-se ao Conselho dos Dez, oConsiglio dei Dieci, talvez um dos mais importantes do governo.
—Eles concordam comigo que Pitt está alarmado desnecessariamente com a posição da França. Talvez haja uma revolução, mas não significa que cheguem à guerra.
—Não, claro que não! Além do mais, mesmo que acontecesse essa catástrofe, nossa independência seria uma vantagem para ambos os lados.
—Foi exatamente o argumento que usei com o Marquês.
—Devia ter acrescentado que não há possibilidade de lutarmos, seja contra quem for— observou o filho.
Ao dizer isso, levantou e começou a andar pela sala, agitado.
—É humilhante, papai. Já tivemos grande poderio. Já dominamos os mares, e só o nome de Veneza trazia visões de vitória!
—Isso foi no século XV. Desde então, perdemos catorze de nossas ilhas no arquipélago grego, em 1540. O sultão nos tomou Chipre, trinta e um anos depois, e Cândia, em 1645. Agora nada nos resta, além das áreas costeiras de Istria e Dalmácia.
Fez uma pausa e acrescentou, amargo:
—Há dez anos, meu antecessor disse ao Grande Conselho: «Não temos forças terrestres, nem forças marítimas, nem aliados».
—Não adianta chorar o passado— observou Francesco, asperamente—, mas uma coisa é clara, e pode dizer ao Marquês: não estamos em condições de lutar e certamente não temos intenção de fazê-lo! Agora, vamos falar de coisas mais agradáveis.
Francesco sentou de novo à mesa e o doge fez um gesto indicando que Caterina, que ouvia de pé, podia sentar também.
Ela escolheu uma cadeira de veludo, ao lado do avô. Já tinha tomado o desjejum no quarto. Achou que o tio tinha feito o mesmo, ao vê-lo estender a mão e servir-se apenas de uma pêra que estava no meio de outras frutas num prato de ouro, no centro da mesa.
Francesco descascou a pêra com uma faca de ouro incrustada de pedras preciosas e disse, com um sorriso:
—De uma coisa duvido: se o Marquês vai ser muito convincente em seu discurso, esta manhã.
—Por que não?— perguntou o doge.
—Porque passou a noite com Zanetta Tamiazzo.
—Ele tem bom gosto. Ela é uma bela mulher.
—Parece que são velhos amigos. Eu estava lá, quando ele chegou. Zanetta me dispensou, junto com os outros nobres, como se fôssemos lacaios dos quais não precisava!
Seu tom era azedo, e Caterina compreendeu que ele estava furioso por Zanetta ter demonstrado preferência pelo Marquês.
Caterina ouvia atentamente. Sabia que o avô e o tio falavam com tanta franqueza na sua frente porque achavam que ela não era importante.
—O Marquês é, sem dúvida, um casanova— continuou Francesco—, creio que já lhe disse, papai, que ele trouxe uma amante no iate. Chama-se Odette e o embaixador da Áustria não a largou a noite toda.
—Onde você os viu?
—Numa festa na Casa Doffino. Foi muito divertida. As mulheres eram sensacionais.
O doge estava apenas parcialmente interessado nos mexericos do filho. Depois de comer metade da pêra, Francesco levantou.
—Tenho um compromisso, papai, de modo que vou deixá-lo em companhia de Caterina. É uma pena que ela não possa participar mais do carnaval. Mas no ano que vem estará casada e tudo será diferente.
—Era sobre isso que eu ia falar com ela— contou o doge.
—Então, eu me retiro— disse Francesco, com um sorriso, saindo da sala.
Caterina virou-se para o avô, com olhar interrogador.
—Tenho notícias para você, minha menina. Notícias realmente muito boas.
—O que é, vovô?— perguntou, apreensiva.
—Tratei de seu casamento.
Caterina juntou as mãos no colo. Foi um gesto nervoso, convulso, que indicava que estava procurando se controlar e refletindo antes de falar.
—Com… quem?
—Com oMarchese Sorranzo.
—Não quer dizer… com aquele velho… que jantou aqui há três dias!
—Creio que preciso lhe dizer com franqueza que não foi fácil arranjar um marido para você.
—Compreendo... isso—, respondeu a moça, baixinho.
—Quando seu pai abandonou a família para casar com sua mãe, perdeu o direito à posição de nobre, não só para ele mesmo, como para os filhos que viesse a ter.
—Papai me explicou isso, há muito tempo. Na Inglaterra, é diferente.
—Muito diferente— confirmou o doge, quase com rudeza—, um par do reino não se prejudica por casar com uma camponesa; mas, aqui, um nobre que casa com uma pessoa de classe inferior perde não apenas o direito à nobreza, como também prejudica os filhos. E também perde o direito a fazer parte do Grande Conselho, oMaggior Consiglia.
—Sei disso.
—Mas seus pais morreram. Você é minha neta e veio para Veneza quando detenho o posto mais alto do governo.
Fez uma pausa, como se esperasse que Caterina dissesse alguma coisa, mas a jovem continuou em silêncio, de olhos baixos.
—Apesar disso, foi muito difícil encontrar alguém que a pedisse em casamento. Os rapazes nobres que têm o nome no Livro de Ouro são conscientes de sua importância. Escolhem para esposa uma jovem que ainda está na escola do convento, que é nobre e que trará para o casamento um dote apreciável.
Houve outro momento de silêncio.
Caterina sabia que o avô dizia a verdade. O Livro de Ouro, que continha os nomes de todas as famílias nobres, era revisto todos os anos, cuidadosamente.
Havia pouco menos de quatrocentas famílias nobres, com mais ou menos dois mil e quinhentos descendentes homens. O casamento de um aristocrata tinha que ser aprovado pelo Grande Conselho, que raramente permitia a união com uma mulher de classe inferior.
—Talvez seja melhor eu... não casar— disse ela, em voz baixa.
—Pensei nessa possibilidade. Felizmente, você é muito bonita e oMarchese, um nobre do mais puro sangue azul e membro de uma das mais antigas famílias de Veneza, pediu sua mão em casamento.
—Ele é… velho... muito velho— disse Caterina, com uma nota horrorizada na voz.
—Reconheço que...